Como ando lendo
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Como de sonhos se trata, quando aos Tártaros dão por sonhos coletivos, matéria paralela à cidade, mas cuidadosamente delimitada porque ninguém se atrevería misturar a cidade com os sonhos, que seria como dizer a vida com o jogo, se transformam em uma futilidade que repugnaria às pessoas sérias.
Quase sempre começa Polanco: Veja, sonhei que estava em uma praça e que encontrava um coração no chão. O pequei e ele batia, era um coração humano e batia, então o levei a uma fonte, lavei o melhor que pude porque estava cheio de folhas e poeira, e fui entregar-lo à delegacia da rua l’Abbaye. É absolutamente falso, disse Marrast. Você o lavou mas depois o enrolou desrespeituosamente em um jornal velho e o jogou no bolso de seu paletó. Como vai jogar no bolso do paletó se estava de camisa, disse Juan. Eu estava corretamente vestido, disse Polanco, e o coração o levei à delegacia e me deram um recibo, isso foi o mais extraordinário do sonho. Não o levou, disse Tell, te vimos quando você entrou na sua casa e escondeu o coração em um baú, desses que têm um cadeado de oro. Imaginem Polanco com um cadeado de ouro, ri grosseiramente Calac. O coração eu levei à delegacia, disse Polanco. Bom, consente Nicole, talvez esse fosse o segundo, porque todos sabemos que você encontrou pelo menos dois. Bisbis bisbis, disse Feuille Morte. Pensando bem, disse Polanco, encontrei como vinte. Deus de Israel tinha esquecido a segunda parte do sonho. Você o encontrou na Place Maubert debaixo de uma montanha de lixo, disse meu compadre, te vi desde o café Les Matelots. E todos batiam, disse Polanco entusiasmado. Encontrei vinte corações, vinte e um com o que eu já tinha levado para a polícia, e todos estavam batendo como loucos. Você não o levou para a polícia, disse Tell, eu te vi quando o escondeu no baú. De qualquer forma batia, consente meu compadre. Pode ser, disse Tell, o fato de bater não me importa em absoluto. Não há nada como as mulheres, disse Marrast, que um coração esteja batendo ou não a única coisa que vêem é um cadeado de ouro. Não te tornes ascético, disse meu compadre. Toda a cidade estava coberta de corações, disse Polanco, me lembro muito bem, era estranhíssimo. E pensar que no começo somente me lembrava de um coração. Por algo se começa, disse Juan. E todos batiam, disse Polanco. De que serviria isso, disse Tell.
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Texto de: 62 / Modelo para armar
Julio Cortázar, 1968
Editora Suma de Letras, abril 2004
Tradução livre - Ana
Como de sonhos se trata, quando aos Tártaros dão por sonhos coletivos, matéria paralela à cidade, mas cuidadosamente delimitada porque ninguém se atrevería misturar a cidade com os sonhos, que seria como dizer a vida com o jogo, se transformam em uma futilidade que repugnaria às pessoas sérias.
Quase sempre começa Polanco: Veja, sonhei que estava em uma praça e que encontrava um coração no chão. O pequei e ele batia, era um coração humano e batia, então o levei a uma fonte, lavei o melhor que pude porque estava cheio de folhas e poeira, e fui entregar-lo à delegacia da rua l’Abbaye. É absolutamente falso, disse Marrast. Você o lavou mas depois o enrolou desrespeituosamente em um jornal velho e o jogou no bolso de seu paletó. Como vai jogar no bolso do paletó se estava de camisa, disse Juan. Eu estava corretamente vestido, disse Polanco, e o coração o levei à delegacia e me deram um recibo, isso foi o mais extraordinário do sonho. Não o levou, disse Tell, te vimos quando você entrou na sua casa e escondeu o coração em um baú, desses que têm um cadeado de oro. Imaginem Polanco com um cadeado de ouro, ri grosseiramente Calac. O coração eu levei à delegacia, disse Polanco. Bom, consente Nicole, talvez esse fosse o segundo, porque todos sabemos que você encontrou pelo menos dois. Bisbis bisbis, disse Feuille Morte. Pensando bem, disse Polanco, encontrei como vinte. Deus de Israel tinha esquecido a segunda parte do sonho. Você o encontrou na Place Maubert debaixo de uma montanha de lixo, disse meu compadre, te vi desde o café Les Matelots. E todos batiam, disse Polanco entusiasmado. Encontrei vinte corações, vinte e um com o que eu já tinha levado para a polícia, e todos estavam batendo como loucos. Você não o levou para a polícia, disse Tell, eu te vi quando o escondeu no baú. De qualquer forma batia, consente meu compadre. Pode ser, disse Tell, o fato de bater não me importa em absoluto. Não há nada como as mulheres, disse Marrast, que um coração esteja batendo ou não a única coisa que vêem é um cadeado de ouro. Não te tornes ascético, disse meu compadre. Toda a cidade estava coberta de corações, disse Polanco, me lembro muito bem, era estranhíssimo. E pensar que no começo somente me lembrava de um coração. Por algo se começa, disse Juan. E todos batiam, disse Polanco. De que serviria isso, disse Tell.
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Texto de: 62 / Modelo para armar
Julio Cortázar, 1968
Editora Suma de Letras, abril 2004
Tradução livre - Ana
1 Comments:
Este blog é seu, muchachita guapa?
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